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ESCOLAS DE SAMBA E SIMBOLISMO ASTROLÓGICO

Porta-estandarte, a rainha rebelde

Fernando Fernandes

 

O Brasil se curva à Europa... ou a Europa se curva ao Brasil?

O Rio é uma cidade fundada e colonizada por portugueses, mantendo até 1808 o status de satélite obrigado a reproduzir os valores hegemônicos da metrópole. Portugal, fascinado pela exploração oceânica, é um país pisciano, regido por Netuno. A dominante Peixes no mapa do Rio de Janeiro expressa essa identificação visceral com a metrópole, assim como o controle do poder pelos portugueses até nove anos após a Independência.

Rainha Carlota Joaquina, um dos modelos da nova moda trazida pela corte.

Com a fuga da corte de Dom João VI para o Rio, os nativos tiveram, pela primeira vez, a chance de observar seus modelos de perto em larga escala. Plutão em trânsito fechava um ciclo e estava em conjunção com a Lua carioca, próximo ao Meio-céu do mapa da cidade. Netuno em trânsito aproximava-se da conjunção com o Descendente. Eram o sinal das mudanças importantes que estavam por vir. Em poucos anos, o Rio vê sua população crescer, seu porto abrir-se ao comércio internacional, seu status subir de centro provincial a capital de um reino transoceânico. Durante exatamente seis anos, o Rio de Janeiro foi a capital de um país europeu com colônias na África e na Ásia.

Não é preciso dizer como isso mexeu com a consciência coletiva da cidade. Por um lado, os cariocas descobrem que seus modelos portugueses não são seres especiais. A distância psicológica em relação à metrópole diminui drasticamente. Por outro lado, percebem que precisam adotar o padrão europeu para lidar, em pé de igualdade, com a elite lisboeta. A ânsia de europeização do Rio de Janeiro é um fenômeno dúbio, como são dúbios os sentimentos em relação aos portugueses, tão criticados quanto copiados. Daí até o século seguinte, o que ocorre é uma europeização de superfície, verniz de civilização do Velho Mundo a recobrir a pele morena da cidade.

A partir de 1850, com a Lei do Ventre Livre, começa a libertação progressiva da mão-de-obra escrava. Da massa de negros libertos surgirão as favelas e o cinturão de bairros populares em torno do centro do Rio, como a Gamboa, o Santo Cristo, a Saúde e, principalmente, o Estácio e a Cidade Nova.

O impulso de ascensão social faz da aristocracia branca imitadora da cultura européia. O proletariado negro imita a aristocracia, transformando-se em consumidor de segunda mão do modelo europeu. O teatro de revista da virada do século é pródigo em traçar retratos caricatos do comportamento da nascente baixa classe média de negros e mulatos, a mesma que fornecerá o combustível para a criação das escolas de samba nas décadas seguintes. Um exemplo é Forrobodó, burleta em três atos de Carlos Bettencourt e Luiz Peixoto, com música de Chiquinha Gonzaga. A peça, cuja ação transcorre em 1910, retrata uma soirée no imaginário (mas nada distante da realidade) Grêmio Recreativo Familiar Dançante Flor do Castelo do Corpo da Cidade Nova. Eis um trecho do final do primeiro ato:

GUARDA (batendo palmas) - Um viva à magnífica, à invicta rainha do carnaval! A nossa porta-estandarte! (Um viva muito chocho faz-se ouvir.)

ZEFERINA - Que é isso, pessoal? Estou vendo vocês todos de tromba caída. Que murcheza é esta?

UM PENETRA - A burrocracia do segundo secretário, D. Zeferina, cismou de inzigi recibo. Diz que sem recibo de quitação das mensalidade, hoje não entra nem rato!

ZEFERINA - É? Pois então fique sabendo: só entro se o pessoal todo entrá!

GUARDA - Isso, mulata! Solidariedade de princípios e firmeza de caractéres!!

CORO - Apoiado! (Vaia.)

PRAXEDES - Um momento! Neste caso eu faço como Piloto: lavo as mãos. O Primeiro Secretário é que vai arresolvê! (chamando para dentro) Seu Escandanhas! (Aparece Escandanhas na sacada)

ESCANDANHAS - Que é que há?

PRAXEDES - Um enguiço. Sá Zeferina acaba de declará que não comparece ao baile se os demais membaros ficá de fora. E nenhum deles tão em dia com a tesouraria...

ESCANDANHAS - Mas abri este precedente é abalá os alicérceos, a base fundamentá, a própria inconomia entrinsêca do nosso clube!

GUARDA - Esse mulato tem valor mesmo! Qual Homero, qual Ruy Barbosa! Tudo isso junto dele é zero!

E a peça prossegue neste tom até a última cena, mostrando negros, mulatos, fuzileiros navais, guardas-noturnos e imigrantes portugueses que se empenham em exibir cultura de almanaque e em falar difícil, o que torna todos ridiculamente pernósticos. Forrobodó, diga-se de passagem, foi um imenso sucesso, alcançando a marca de 1500 representações consecutivas no Teatro São José!

Os bailes na Cidade Nova, bairro de baixa classe média e reduto de cultura negra no Rio de Janeiro do início do século XX, sempre atraíram a atenção de desenhistas e cronistas de costumes.

É neste contexto de busca de status e de ascensão social que deve ser entendido o papel da porta-estardarte no desfile: resquício do servilismo cultural ao modelo de além-mar, eco longínquo de uma época em que Paris ditava o padrão para o mundo. Mas é apenas um verniz. Veja-se que o casal porta-estandarte & mestre-sala não se integra ao restante do desfile: ocupa um espaço próprio, apartado das outras alas, e não participa organicamente do enredo. Sua passagem é quase uma pausa no ato de contar a história. Em volta, porém, eis a massa a afirmar o poder avassalador do coletivo e eis a bateria, cujo ritmo carrega a indefectível marca afro-brasileira deste fenômeno sociocultural.

Aí compreendemos, enfim, o verdadeiro papel do mestre-sala e da porta-bandeira. O que houve foi uma apropriação, e aquele estandarte simboliza o poder tomado ao colonizador. A bandeira a tremular representa o território livre. No processo do desfile, tal território constrói-se no domínio do imaginário, mas encontra correspondência histórica no quilombo, nas revoltas malês que aterrorizaram a Bahia no século passado, nos morros cariocas fora do controle do grupo hegemônico.

Sob tal perspectiva, o eixo articulador do sentido ideológico passa a ser o da casa 4 - casa 10, o do confronto entre a base e o topo da pirâmide social. No ato de desfraldar a bandeira na avenida, existe ao mesmo tempo a representação de uma rebelião consentida (o morro ocupando o asfalto com o beneplácito da classe média e das autoridades na platéia) e de um ato de submissão cultural (a massa negra que se deixa capitanear por um casal "real", eco da nobreza de origem européia). Seja como for, o simbolismo é dúbio. O mapa da cidade já antecipa tal indefinição no jogo de recepções mútuas entre os regentes dos quatro ângulos.

Mas pode-se pensar que a figura da porta-estandarte rodopiando ao ar livre, em plena via pública, traz também um longínquo eco da Revolução Francesa. Não é uma figura solar, mas libertariamente uraniana. Observando o mapa do Rio, vemos a conjunção de Marte e Vênus em Aquário oposta a Saturno, em Leão. A mulher carioca, pioneira no Brasil na busca da igualdade entre os sexos e muito distante da imagem de mãe e esposa submissa que caracteriza tantas mulheres sul-americanas, identifica-se com a independência de Vênus em Aquário. A porta-bandeira conduz o estandarte da liberdade (Marte em Aquário) com a mesma ousadia com que Chiquinha Gonzaga levou o corta-jaca para os salões aristocráticos e Leila Diniz desfilou sua gravidez em Ipanema. É a figura diferenciada e solitária, que carrega o peso da responsabilidade de levar a escola ao topo. É, enfim, aquela Vênus em Aquário em oposição a Saturno no mapa da cidade.

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Atalhos de Constelar 80 - fevereiro/2005

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