Revista Constelar Revista Constelar

 

 

 
 
 

 

 

A dupla chama: amor e erotismo
AUTOR: Octavio Paz
Editora Siciliano - 196 páginas - 1994

O esquecimento da unidade e da identidade humana

Ao obscurecimento da antiga imagem do mundo corresponde o ocaso da idéia da alma. Na esfera das relações humanas a desaparição da alma se traduziu numa paulatina mas irreversível desvalorização da pessoa. Nossa tradição acreditava que cada homem e cada mulher eram um ser único, irrepetível; nós, os modernos, os vemos como órgãos, funções e processos. A alma foi o fundamento da natureza sagrada de cada pessoa: porque temos alma, temos livre arbítrio, faculdade para escolher.

Por isso, toda essa especulação em torno do que se chamou de corpo, alma e espírito provocou uma dúvida que não me parece exagerado chamar de ontológica; dúvida sobre o que é ou pode ser realmente um ser humano. É mero corpo perecível, um conjunto de reações físico-químicas? É uma máquina, como pensam os especialistas da Inteligência Artificial? Num e noutro caso, é um ente ou, melhor dizendo, um produto que, se chegássemos a ter os conhecimentos necessários, poderíamos reproduzir e até melhorar à vontade. O ser humano, que havia deixado de ser a cópia da divindade, agora também deixa de ser um resultado da evolução natural e ingressa na ordem da produção industrial: é uma fabricação. Esta concepção destrói a noção de indivíduo e assim ameaça em seu próprio núcleo os valores e crenças que tem sido o fundamento de nossa civilização e de nossas instituições sociais e políticas.

A noção de indivíduo confunde-se com a de liberdade. A liberdade não é um conceito isolado nem pode ser definida isoladamente; vive em relação permanente com outro conceito sem o qual não existiria - a necessidade. Por sua vez, esta é impensável sem a liberdade: a necessidade serve-se da liberdade para realizar-se e a liberdade só existe diante da necessidade. Podemos dizer até que a liberdade é uma dimensão da necessidade. E sem liberdade não há o que chamamos de persona. Isso foi visto pelos trágicos gregos com maior clareza que os filósofos. Desde então, os teólogos não pararam de discutir sobre a relação entre a predestinação e o livre arbítrio.

Tudo, então, depende do renascimento da noção que tem sido o eixo de nossa civilização: a pessoa. Não penso numa volta impossível às antigas concepções de alma; acredito que, sob pena de extinção, devemos encontrar uma visão do ser humano que nos devolva a consciência da singularidade e da identidade de cada um. Visão ao mesmo tempo nova e antiga, que encare cada ser humano como criatura única, irrepetível e preciosa. Cabe à imaginação criadora dos nossos filósofos, artistas e cientistas redescobrir não o mais longínquo e sim o mais íntimo e diário: o mistério que é cada um de nós. Temos de reinventar outra vez o homem.

Kant (direita) fez a crítica da razão pura e da razão prática - precisamos hoje de outro Kant que faça a crítica da razão científica.

Portanto, os males que afligem as sociedades modernas são políticos e econômicos, mas também morais e espirituais. Uns e outros ameaçam o fundamento de nossas sociedades: a idéia do indivíduo. Essa idéia foi a fonte das liberdades políticas e intelectuais, e toda reforma política e social deve ser acompanhada de uma reforma não menos urgente do pensamento. Kant fez a crítica da razão pura e da razão prática - precisamos hoje de outro Kant que faça a crítica da razão científica. Afinal, todos os sistemas de interpretação falharam. Temos que começar de novo e fazer a mesma pergunta que fizeram Kant e outros fundadores do pensamento moderno. O momento é propício porque na maioria das ciências é visível, até onde nós, leigos, podemos perceber, um movimento de auto-reflexão e autocrítica, como mostram admiravelmente os cosmólogos modernos. O diálogo entre a ciência, a filosofia e a poesia poderia ser o prelúdio da reconstituição da unidade da cultura e também da ressurreição do indivíduo, que tem sido a pedra de fundação e o manancial de nossa civilização.

Ressurreição que talvez signifique a revalorização da Astrologia. Afinal, não é ela a ciência que tenta mostrar a unidade do indivíduo dentro da unidade da natureza cósmica - e que formaria, então, um cultura una, uma Macro-Ciência?

Tudo isto desde que soubéssemos em torno de quê todo esse universo orbita.

A consciência humana

Rotas de navegação deste artigo

Parte 1 - A chama vermelha: a carne do corpo
Parte 2 - A chama azul: o corpo do espírito
Parte 3 - Breve história sobre o conhecimento do Homem e do Mundo
Parte 4 - A possibilidade de convergência dos conhecimentos humanos
Parte 5 - O esquecimento da unidade e da identidade humana
Parte 6 - A consciência humana
Parte 7 - Teorias sobre o funcionamento da mente humana


Anterior | Próxima | Sumário desta edição | Índices

© 1998-2004 Terra do Juremá Comunicação Ltda.