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EM MEMÓRIA DE SÉRGIO MORTARI

A partida do médico-astrólogo

Depoimentos

 
Hoje fui me despedir de meu amigo
Valdenir Benedetti

A morte física não me impressiona tanto, talvez muitos velórios domésticos, quando eu era criança, tenham me acostumado com isso - coisa de Escorpião. Os mortos são serenos - e hoje eu vi um morto sereno. Em paz, como há um bom tempo eu não o via. Em paz.

No silêncio que esse lugar de cortejar os corpos mortos nos impõe, minha mente viajou, mergulhou no túnel do tempo - e eu experimentei, por alguns instantes, a sensação do momento em que, pela primeira vez, entrei no "espaço de ficar" de meu velho amigo.

Um pequeno escritório, paredes amareladas por milhões de cigarros fumados, ainda, naquela época, compulsivamente. Galaxy slims derramando-se sobre um largo cinzeiro, boa parte sobre a mesa - que o cinzeiro vivia cheio. Um dia, por exigência de seus pulmões fragilizados, deixou os cigarros, radicalmente. Deixou um amigo de 50 anos, o que não é fácil... E jamais lhe ouvi uma queixa sequer....

E livros, infinitos livros, pilhas e pilhas de livros esparramados por todo aposento, as estantes transbordando, a mesa lotada de livros e peças de computador, impressoras, disquetes sem nome contendo misteriosos e intangíveis programas...

Impossível achar qualquer coisa que procurássemos por ali - bem, talvez alguma coisa que não estivéssemos procurando, pudesse ali ser encontrada. Mas o Sérgio sabia exatamente onde estava cada partícula daquele caos, coisas da física quântica que só um netuniano é capaz de entender. Administrar partículas e caos, coisa de físico mesmo...

Mas o que mais chamava a atenção, naquele lugar, era o próprio Dr. Sérgio. Encurvado sobre o teclado, catando um milho sofrível, sempre em frente ao monitor do computador (aliás geralmente programado com cores berrantes tipo mochila de surfista, roxo, verde limão, por aí...) Ele gostava assim e pronto. Essa é a imagem mais forte que vai ficar dele, olhando assim de lado, o formato do Saturno, a firmeza do Saturno. Não adiantava tentar explicar um jeito mais fácil de formatar um texto ou uma planilha. Ele ouvia com atenção e fazia exatamente do jeito dele. "Eu gosto assim", dizia.

Muitas vezes estive nesse lugar, e muitas vezes me veio à mente O Castelo de Franz Kafka, um lugar com prateleiras de altura e comprimento infinitos, recheadas de papéis, onde o Sr. K., agrimensor contratado para fazer algum trabalho no território do castelo, imaginava que estavam suas ordens de serviço, que jamais foram encontradas...

Outra compreensão que me aflorou, durante as muitas noites que passamos copiando programas e batendo papo, e discorrendo sobre astrologia, mapas, programas, astrologia, mapas, medicina, programas - bem antes da existência da Internet e dos pentiae... e depois também - é que aquele lugar, com sua infinidade absurda de livros caoticamente organizados, e aquele Sr. Saturno imperando, totalmente domiciliado, eram a reprodução, a própria materialização da mente do astrólogo.

Creio que é exatamente assim, a cabeça da maioria de nós. Uma multidão de idéias, informações, conhecimentos, sentimentos espalhados pelo chão da mente, pelas prateleiras da mente, com uma esperança distante de que, um dia, a gente consiga organizar tudo o que fomos e o que estivemos avidamente absorvendo em nossa caminhada, com a ilusão de que, talvez, todo o conteúdo daqueles milhares de livros, em princípio inconsciente, se torne um dia totalmente consciente... quem sabe...

Se tiver que ser pintada, um dia, a mente do astrólogo, tem que ser daquele jeito. Pra sempre vou me lembrar daquilo...

O Sérgio tinha um prazer imenso em copiar programas. Não era por causa da grana, que ele comprava os programas originais. Era pra dar para os amigos, compartilhar. A maior besteira era dar um programa pra ele e dizer para não copiar para ninguém... doce ilusão...

Creio que, com aquele Saturno determinando o projeto de vida dele, tão poderoso e inexorável em sua rigidez - sua vida muito disciplinada, um estudioso metódico e rígido, e profissionalmente também assim, impecável por tudo que eu sei - precisava de um escape, de uma válvula, onde o Netuno, além da intuição, afinando-se com a vida como um gesto, se expressasse... Alguma mínima transgressão, um pouquinho de "malandragem do bem", que não prejudicasse jamais quem quer que fosse, que servisse como código aquariano do "compartilhar" aquilo que a todos deveria pertencer... Nos divertimos à beça com isso. E aprendemos muito também: sobre programas, sobre amizade, sobre doar, sobre astrologia...

Mortari e a história do micro roubado

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