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ASTROLOGIA E MITOS RELIGIOSOS
Marte, Jorge da Capadócia
e Ogum do Brasil

Fernando Fernandes
Início | Parte 7

Como o Brasil vive seu Marte

As tradições referentes a São Jorge e a Ogum começaram a firmar-se no Brasil ainda no período colonial, o que permite que procuremos o molde astrológico desses cultos no mapa-matriz de todo o período pré-independência: a carta do Descobrimento, que corresponde ao momento em que a esquadra de Cabral fez o primeiro avistamento da terra, ao largo da costa baiana, nas imediações do Monte Pascoal. Em outros artigos, já apresentamos uma versão retificada desta carta para as 16h53 LMT do dia 22 de abril de 1500, com o Ascendente em 28º48' de Libra e o signo de Escorpião interceptado na casa 1 (um signo interceptado é aquele que está totalmente contido dentro de uma casa e sem contato com sua cúspide, ou ponto inicial). A outra hipótese, defendida, por exemplo, por Raul Martinez, seria aquela de um Ascendente Escorpião para o mapa do Descobrimento. Em qualquer das duas versões, a casa 9 (crenças, religiões, ética) apresenta como único ocupante o planeta Marte, no primeiro grau do feminino e lunar signo de Câncer. Marte está em trígono exatamente com a Lua em Peixes, regente de Câncer, e com Urano no último grau de Aquário, posição muito próxima do Ascendente da carta da Independência, da qual este Urano é regente.

Marte em Câncer na casa das crenças e religiões já indica que, desde o alvorecer da formação do país, haveria de impor-se o culto a um princípio marciano - um "deus-guerreiro" - temperado pela natureza maternal da Lua. Do vasto conjunto de santos católicos, aquele que melhor preenchia tais características era exatamente São Jorge em sua concepção de "vencedor de demandas" sob a proteção do estandarte da Virgem Maria (o trígono com a Lua em Peixes). Esta Lua identifica-se também com Iemanjá, a divindade do estuário dos rios da Nigéria, que no Brasil transformou-se em Rainha do Mar (Peixes, signo da vastidão oceânica). A participação de Urano na configuração mostra que tais cultos - a Iemanjá, a Ogum, a São Jorge e a Nossa Senhora - tendiam (e ainda tendem) a gerar uma síntese criativa, apta a afastar-se cada vez mais dos modelos originais e a permitir a formulação de uma expressão religiosa própria, tipicamente nativa, mediante o livre aproveitamento de elementos das raízes européia, africana e indígena. Observe-se que Urano e Lua ocupam a casa 5, da criatividade e também dos afetos. A religiosidade brasileira está vocacionada para um desprendimento das amarras institucionais, ganhando uma dimensão intimista, libertária e afetiva. Aliás, cabe observar também que o Meio-Céu do mesmo mapa está em Câncer e que seu regente, a Lua, encontra-se em Peixes. Sendo dois signos aquáticos e femininos, não é de estranhar que o país tenha como padroeira (um sentido de casa 10) Nossa Senhora Aparecida, uma virgem negra cuja imagem foi encontrada no século XVIII por humildes pescadores no rio Paraíba, na mesma região onde hoje ergue-se a basílica de Aparecida do Norte.

Como toda configuração astrológica comporta expressões positivas e negativas, Marte em Câncer na 9 também fala de combate por questões religiosas e da agressividade com que a Igreja Católica se impôs em alguns momentos da vida colonial, em estreita associação com o poder dos administradores portugueses (trígono com a Lua, regente do Meio-Céu, ponto que simboliza a autoridade do governante). As conversões forçadas, as manifestações de intolerância religiosa e a violência contra índios e escravos em nome da fé também estão no escopo da configuração.

Mas a Igreja Católica teve na colônia, por outro lado, representantes de elevada estatura moral e profundo amor pela terra e sua gente. O exemplo mais evidente foi o do jesuíta José de Anchieta, um doce se bem que enérgico espanhol cuja dedicação a história registrou atribuindo-lhe o título de Apóstolo do Brasil. Anchieta tinha Marte no primeiro grau de Câncer ou nos últimos minutos de Gêmeos (nasceu em 19 de março de 1534, horário desconhecido) e, de todas as formas, em conjunção muito próxima com o Marte do Descobrimento e com a cúspide da casa 9 desta mesma carta. Anchieta utilizava o teatro e a música em seu trabalho de catequese - foi dramaturgo e compositor - o que corporifica outro sentido do trígono entre Marte na 9 e Lua-Urano na 5 na carta do Descobrimento: a associação entre arte e religiosidade durante todo o período colonial. Tal potencial realizou-se tanto através do Catolicismo dominante (basta pensar na arte sacra de Aleijadinho e do padre-compositor José Maurício) quanto dos cultos dos escravos, que resultaram em um manancial de referências estéticas até hoje explorado pela música popular, pela dança e pela pintura.

Descobrimento do Brasil - 22.04.1500, 16h53 LMT (horário retificado), ao largo da costa baiana, na região do Monte Pascoal. Observe-se Marte (São Jorge-Ogum) isolado na casa 9 (religiosidade).

Conclusões

A simbologia astrológica fala de necessidades e de princípios universais, mas cada cultura cria suas próprias formas de manifestar o significado de signos, planetas e casas. Como as culturas são como organismos vivos, onde cada elemento ajusta-se aos demais e responde às necessidades de adaptação ao meio ambiente, as particularidades da formação cultural geram traduções de conteúdos astrológicos que não são absolutamente intercambiáveis, se bem que guardem analogias entre si. Assim, não há como tomar o panteão dos deuses da mitologia greco-romana e encontrar, para cada um, uma correspondência exata nas lendas da Europa cristã, ou na mitologia afro-ameríndia. A lenda de São Jorge, por exemplo, guarda ecos dos mitos relacionados ao Ares grego e ao Marte Romano, assim como os mitos de Ogum encontram ressonância na história do santo cristão. Todos expressam valores de Marte, mas sempre com nuances locais, que respondem às necessidades específicas da comunidade que os cultua.

O Brasil, em 500 anos de história, já elaborou suas próprias sínteses, que são tão ricas do ponto de vista simbólico quanto aquelas originárias da velha civilização grega. Neste sentido, entender o significado de São Jorge e de Ogum para o povo brasileiro é entender também como o princípio simbolizado por Marte é vivenciado nestas paragens tropicais.

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