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URANO E O JEITO BRASILEIRO DE SER
Tupy or not Tupy?
Equipe de Constelar

O irreverente Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade, tem muito a ver com a discussão de como fazer uma Astrologia afinada com as características próprias de nossa cultura tropical. Construir uma Astrologia Brasileira viva e criativa talvez exija perder o excesso de reverência para com a tradição européia - o que não significa negá-la.

"Ai esta terra ainda vai cumprir seu ideal,
ainda vai tornar-se um imenso Portugal."

(da peça Calabar, Chico Buarque de Hollanda)

O Brasil do Descobrimento é Libra (Ascendente no penúltimo grau deste signo, considerando o horário retificado de 16h53 LMT para o avistamento do Monte Pascoal). Mas Urano no mapa da colônia já antecipava o futuro país independente, situando-se exatamente no final de Aquário, onde está o Ascendente do Grito do Ipiranga.

Os portugueses trouxeram o rigor de suas leis e o empenho dos missionários católicos para tentar fazer desta terra uma extensão da Europa. Mas os nativos tinham lá alguns meios originais de demonstrar seu descontentamento. O arrogante bispo Pero Fernandes Sardinha, devorado pelos caetés em 16 de junho de 1556, descobriu-o na própria pele (literalmente). O insubmisso Urano transitava, bem a propósito, pelo Ascendente da Colônia.

Mais de três séculos depois, nasceria em São Paulo Oswald de Andrade (11.1.1890), cuja inquietação modernista o levaria a produzir, em 1928, o Manifesto Antropofágico, um texto instigante que questiona o servilismo cultural a que estávamos acostumados e coloca-se "contra todos os importadores de consciência enlatada".

Curiosamente, o Urano natal de Oswald de Andrade faz conjunção com o Ascendente do Brasil Colônia e também com o Urano do banquete selvagem em que o bispo Sardinha reforçou a dieta dos caetés.

Oswald era um provocador. Propôs uma nova forma de olhar o Brasil e de assumir nossa ligação visceral com a terra de Pindorama. A provocação está no mapa: basta observar o Marte em Escorpião de Oswald na casa 1 da Colônia, fazendo oposição a Mercúrio-Sol do Descobrimento. Para completar, Plutão de Oswald faz conjunção com Vênus do Descobrimento (e também com a Lua da Independência). Oswald, como muitos intelectuais nascidos naqueles anos, tinha uma habilidade especial para atualizar símbolos arcaicos e dar-lhes um frescor de modernidade. Foi o caso do índio antropófago, subitamente elevado à condição de ícone da irreverência com que se propunha tratar os intocáveis valores da cultura do mundo civilizado.

Nesta primeiros anos do novo milênio, Urano cruza o Ascendente do mapa da Independência do Brasil. É hora de pensar outra vez no que significa ser brasileiro e produzir cultura nessas terras - inclusive em termos astrológicos. O que Marcelo Yamauchi sugere não é exatamente a retomada da irreverência oswaldiana? Nada de Apolos e Afrodites e Atenas e Quírons: temos o Boi-tatá, Jaci, Guaraci, o Curupira, podemos construir um zodíaco só de referências nativas. Se o zodíaco também é uma construção cultural, por que diabo projetar no céu uma cultura que não é nossa?

É pura provocação, mas provocação saudável, que nos pode levar a uma prática astrológica mais perto dos valores e do imaginário da clientela brasileira. Afinal: Tupy or nor Tupy?

Carta interna e estrutura de casas: Descobrimento do Brasil, 22.4.1500, 16h53 LMT (retificado), litoral sul da Bahia - 16s41, 39w00; círculo intermediário: Bispo Sardinha é devorado pelos índios - 16.6.1556, litoral de Alagoas; círculo externo: Oswald de Andrade, 11.1.1890, São Paulo, SP, carta solar.

MANIFESTO ANTROPOFÁGICO (trechos)

Oswald de Andrade

Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.

Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.
Tupy, or not tupy that is the question.

[...]

Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil. Uma consciência participante, uma rítmica religiosa.
Contra todos os importadores de consciência enlatada. [...]

Queremos a revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem. A idade do ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls.

[...]

Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.

Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós. Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei analfabeto dissera-lhe: ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia.

[...]

Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo.
Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de Senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses.

[...]

Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Matias. Comi-o.

Só não há determinismo, onde há mistério. Mas que temos nós com isso?
Contra as histórias do homem, que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César.


[...]

Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti.
Se Deus é a consciência do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes. Jaci é a mãe dos vegetais.

[...]

Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.

Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz.
A alegria é a prova dos nove. No matriarcado de Pindorama.
Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada.
Somos concretistas. As idéias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas. Suprimamos as idéias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas.

Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D. João VI.

A alegria é a prova dos nove.

[...]

A nossa independência ainda não foi proclamada. Frase típica de D. João VI:

-Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte.

Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud - a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.

Oswald de Andrade

Em Piratininga, Ano 374 da deglutição do Bispo Sardinha.

(Originalmente publicado em Revista de Antropofagia, n.1, ano 1, maio de 1928, São Paulo.)

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